CAMOCIM CEARÁ

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa.(Mt.5)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

DIDÁTICA E EPISTEMOLOGIA PARTE 1

A INTEGRAÇÃO ENTRE DIDÁTICA E EPISTEMOLOGIA DAS DISCIPLINAS:
UMA VIA PARA A RENOVAÇÃO DOS CONTEÚDOS DA DIDÁTICA
Autor: José Carlos Libâneo, Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
libaneojc@uol.com.br
Resumo:
O texto visa argumentar em favor da necessária integração entre a didática e a
epistemologia, no sentido de conceber o conteúdo da didática em correspondência
com a epistemologia do conhecimento científico. Faz-se inicialmente uma incursão
histórica sobre a questão, depois são apresentadas algumas concepções que têm
influenciado o ensino da didática e das didáticas, no Brasil, na perspectiva da
mencionada integração. Por fim, toma-se partido por uma dessas concepções, a
concepção do ensino desenvolvimental, dentro da tradição da teoria históricocultural
da atividade de aprendizagem, que explicita a necessária relação entre o
conhecimento escolar (didática), o conhecimento científico (epistemologia) e o
conhecimento cotidiano e as representações dos alunos. Dessa forma, assegura a
inter-relação entre didática e epistemologia, numa perspectiva crítica.
Introdução à questão
A discussão que envolve o tema está ligada ao desenvolvimento teórico da didática
e suas implicações na sistematização do “campo do didático”. Não é nenhuma novidade
admitir que em boa parte dos cursos de licenciatura no Brasil, a despeito da intensa
produção do movimento crítico da didática desde o início dos anos 1980, mantém-se a
concepção de didática prescritiva, instrumental1. Destaca-se nesta visão tradicional de
didática uma concepção epistemológica de aplicar uma teoria prévia à prática como,
também, a separação entre conteúdos/objetivos e métodos/meios, tratando essas categorias
como coisas distintas, não considerando a articulação entre métodos de ensino e métodos da
ciência ensinada.
A didática crítica, surgida no Brasil explicitamente no início dos anos 1980, levou
os professores a vincularem o ensino às realidades sociais, seja entendendo os conteúdos
como cultura crítica seja relacionando-os com saberes do cotidiano. É possível questionar,
por um lado, se essa didática conseguiu, em suas várias correntes teóricas, articular
pedagogicamente o social, o político, o cultural e o escolar; por outro, em que grau a
metodologia de ensino nessas orientações teóricas de cunho crítico têm se preocupado com
o vínculo entre a didática e a epistemologia dos saberes ensinados. Pesquisadores ligados à
teoria curricular crítica ou a pedagogias do cotidiano2, desde os anos 1990, têm valorizado
experiências de mudanças no modo de compreender a relação entre teoria e prática em
didática que constroem suas propostas pedagógicas no próprio contexto do cotidiano
escolar. Esse entendimento põe claramente em questão o caráter prescritivo e instrumental
da didática e, assim, a ideia de que teóricos e professores possam constituir-se como
direcionadores de caminhos para a prática docente. Escreve Lopes sobre isso:
(...) as pesquisas educacionais não são feitas para dizer à escola e aos professores o que
fazer e como fazer (...) É possível acreditar que um entendimento mais profundo da
educação permite circular discursos e estabelecer diálogos, em múltiplas direções, com
currículo, mas destituído da pretensão de construir um lugar privilegiado do saber sobre a
prática” (Ib., p.21). (Lopes, 2007, p.20).
Ressalte-se que não tem faltado polarizações entre educadores de posições
sociocríticas sobre o modo de funcionamento das escolas num mundo em mudança, seja
2
opondo a ênfase entre objetivos sociopolíticos e culturais à tendência a propor orientações
práticas no ensino, seja opondo duas visões de escola: uma, de formação geral (cultural e
científica), outra de provimento de vivência social/cultural (Cf. Libâneo, 2006). No mesmo
sentido de polarizações que se excluem mutuamente, pode-se mencionar a ênfase nas
práticas socioculturais na escola em contraponto com a ênfase nas práticas pedagógicas (e,
por conseqüência, na epistemologia dos saberes constituídos), ou vice-versa.
Não se fará aqui a discussão dessas posições, são mencionadas apenas para
identificar algumas pistas do percurso assumido pelo ensino da didática no Brasil até o
presente, incluindo a questão epistemológica. Assim, pergunta-se: de que forma as
correntes atuais da didática têm tratado a questão da integração entre didática e
epistemologia? Em que grau questões epistemológicas e da metodologia das ciências têm
penetrado nas discussões sobre o conteúdo da didática e a formação de professores? Como
se articulam nessas correntes os planos epistemológico, psicológico e didático?
1. A pertinência da abordagem epistemológica nas questões didáticas
Pode-se identificar na história da didática ao menos três fases. A primeira lembra
Comênio e Herbart em que se tem uma teoria geral do ensino (didática “geral”) aplicada a
todas as matérias, não importando as particularidades epistemológicas dessas matérias. Na
segunda, tem lugar a consolidação das metodologias específicas das ciências ensinadas,
fato que, do ponto de vista epistemológico, representou um avanço na investigação
didática, dando relevância à dimensão epistemológica dos saberes, embora às vezes isso
tenha se dado em prejuízo do fundamento pedagógico de todo ensino, inclusive por
rechaçar a didática geral. A terceira fase, desejada por uns e rejeitada por outros,
corresponde à busca da unidade teórico-científica entre a didática e as didáticas específicas,
“em que cada metodologia específica desenvolve seu perfil mas, em razão de muitas
questões comuns, conhecimentos gerais, tarefas, etc., está relacionada com as demais
metodologias e à didática geral” (Klingberg, p. 33). Busca-se, pois, uma integração entre a
didática e as metodologias específicas em que se ressalta o que é comum, básico, para os
objetivos de formação da personalidade dos alunos e para o trabalho docente e a questão da
epistemologia dos saberes específicos (Libâneo, 2008).
Para se sustentar a idéia de que toda didática supõe uma epistemologia, é preciso
admitir que o núcleo do problema didático é o conhecimento, no qual estão implicadas
questões lógicas e psicológicas. Isso significa reconhecer os vínculos da didática com uma
filosofia, especialmente, com uma posição epistemológica, a despeito do acentuado papel
na constituição dessa disciplina da psicologia da educação, da sociologia da educação, da
teoria social do currículo e, recentemente, da linguística. Com efeito, o conhecimento é o
objeto do ensino, e para isso se estrutura a atividade de aprendizagem. Na escola, importa
que o aluno se aproprie de conhecimentos, sendo que essa apropriação implica um modo de
conhecer e os meios intelectuais e afetivos de conhecer. Neste ponto, tem razão Charlot
quando escreve: “só há saber em uma certa relação com o saber, só há aprender em uma
certa relação com o aprender” (2001, p.17). Eis, então, que para se criar as melhores
condições de um bom ensino é preciso saber como se dá o processo de apropriação de
conhecimentos, e esta é uma questão eminentemente epistemológica.
Dessa forma, para compreender o problema pedagógico das mediações entre o
sujeito e o saber, a pedagogia não é suficiente, é preciso saber o percurso de construção
pela humanidade dos saberes específicos, e associá-los à aprendizagem. Essa questão,
precisamente, é uma questão epistemológica, pois que “epistemologia”, em seu sentido
mais convencional, é o estudo crítico e histórico dos princípios, hipóteses e resultados das
diversas ciências, sendo que, no ensino escolar, talvez fosse apropriado falar em
3
“epistemologia aplicada”, ou seja, o processo de construção de conceitos, a determinação
de seu nível de formulação, os obstáculos epistemológicos, etc.
A questão problemática a tratar aqui, portanto, liga-se a várias perguntas. Como
aprendemos coisas, ou melhor, como nos apropriamos dos saberes inseridos nas disciplinas
específicas? Por outro lado, é necessário aprender os conteúdos e os percursos
investigativos das disciplinas escolares? Se a resposta a esta última pergunta é “sim”, o
problema do aprender, isto é, a relação do aluno com o objeto de conhecimento, está
associado a uma postura epistemológica ou psicológica ou a ambas? Passemos a considerar
algumas concepções atuais que formulam entendimentos sobre as relações entre didática e
epistemologia.
2. Cinco posições sobre as relações entre didática e epistemologia
Os didatas franceses
A posição mais estrutura no campo da didática a respeito do vínculo entre didática e
epistemologia vem de pesquisadores franceses que se auto-intitulam “didatas das
disciplinas”3, entre outros, M. Develay, J.L. Martinand, J.P. Astolfi, G. Vergnaud. Eles
consideram a didática como o estudo dos processos de ensino e aprendizagem em sua
relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar,a organização das situações
didáticas e a escolha e os meios de ensino. Vários deles têm preferido designá-la no plural,
didática das disciplinas, sugerindo uma recusa de uma didática geral4. Para eles, visando
compreender, explicar, justificar as situações de ensino de conteúdos específicos, a didática
centra-se em dois temas básicos: a natureza do saber a ensinar e a compreensão da relação
com o saber dos alunos e do professor. Altet explicita a preocupação dos didatas:
Os trabalhos dos didatas são produto de saberes sobre o processo ensinar-aprender ao nível
dos aprendizes, de sua maneira de aprender. Eles têm construído especificamente
ferramentas conceituais sobre a relação aprendiz-saber na aprendizagem de saberes
escolares de algumas disciplinas. Analisando a construção de saberes escolares no plano
epistemológico, e sua aquisição pelo aprendiz, no plano psicológico, os didatas põem em
evidência componentes chave da aprendizagem (Altet, 1997, p.35).
Reconhece-se aí a inter-relação entre didática e epistemologia, tal como expressa,
também, Develay: “A didática pensa a lógica das aprendizagens a partir da lógica do saber
(e sua epistemologia) e a pedagogia pensa a lógica das aprendizagens a partir da lógica da
sala de aula" (Cf. Le Roux, 1997, p. 10). Com efeito, se o núcleo da didática é o
conhecimento científico dos processos de transmissão e apropriação de conhecimentos de
um conteúdo disciplinar, é impossível desvinculá-la da epistemologia, ou seja, da natureza
do conhecimento, sua gênese e sua estrutura. Ao mesmo tempo, se o ensino se dirige à
aprendizagem dos alunos, o saber científico precisa converter-se em saber a ser ensinado,
pelo que as ciências precisam passar por uma transposição didática. Sobre isso, escreveu
Vergnaud:
Contrariamente a certas idéias geralmente aceitas, a didática não visa apenas encontrar
melhores métodos ou novas técnicas de ensinar um conteúdo específico dado de antemão;
ela pode considerar profundamente os conteúdos do ensino: e isto por razões diversas
relacionadas com as finalidades do ensino, ao desenvolvimento da criança e do adolescente,
à epistemologia do domínio considerado, ou à evolução das qualificações exigidas pela
nossa época. (...) De fato, a didática tem por objetivo estudar o processo de transmissão e
apropriação de conhecimentos, nos aspectos práticos e teóricos dos conhecimentos que são
específicos do conteúdo (Cf. Roumegous, 2002, p.33).
Os didatas franceses trabalham com vários conceitos atrelados ao campo da
didática: contrato didático, representações/concepções, formulação de conceitos, objetivoobstáculo,
conflito sociocognitivo, situação-problema, transposição didática (Cf. Le Roux,
4
p.10; Cornu e Vergnioux, p. 45). Todos eles vinculam-se ao movimento da didática das
disciplinas, ao qual se ligam pesquisadores dos vários saberes científicos ensinados na
escola. Para os objetivos deste texto é suficiente tratar do conceito de “objetivo-obstáculo”,
que se aproxima bastante do modo de lidar com a didática no plano do epistemológico.
A noção de “objetivo-obstáculo”, formulada por Martinand e assumida por Develay
e Altolfi, é o ponto de partida para criar situações de aprendizagem, com base na matéria
ensinada e nas representações dos alunos e seus modos de pensar. Astolfi pergunta:
O que, em uma seqüência de ensino, constitui um obstáculo superável, bastante
exigente para que a tarefa seja interessante, mas suficientemente calibrado para que
essa classe seja capaz de alcançar uma solução? Como introduzir este tipo de
“espaço” onde a atividade intelectual pode ser máxima? (apud Altet, 1997, p.98).
Conforme Astolfi, a noção de obstáculo está associada, inicialmente, a algo
negativo, pois são obstáculos aqueles enfrentados pelos alunos em diferentes idades, para se
apropriar das noções disciplinares, sejam eles de caráter mais psicológico ou mais
epistemológico (existentes no próprio processo de elaboração de um conceito). Esses
obstáculos, em princípio, impediriam de se chegar aos objetivos de aprendizagem. Mas
precisamente, parte-se deles para reorientá-los para um “saber novo”, no sentido de que o
professor aposta nas possibilidades de superação (ou não) do obstáculo, não no seu aspecto
negativo.
E como obstáculos podem se transformar em objetivos de ensino? Sem cair numa
absolutização dos objetivos, como freqüentemente se fez na pedagogia por objetivos
inspirada no behaviorismo, Altolfi propõe “utilizar a caracterização de obstáculos como um
modo de seleção de objetivos”, que não sejam nem muito fáceis de atingir nem fora do
alcance dos estudantes (Id., p.101). Segundo ele, os objetivos visam a superação dos
obstáculos, apontam níveis de progresso a serem conquistados, pois não são adquiridos
espontaneamente. A superação dos obstáculos pelos objetivos são os verdadeiros objetivos
conceituais.
Develay propõe um ensino com situações-problema em que podem surgir as
representações dos alunos e a identificação de obstáculos de aprendizagem. Para isso, em
primeiro lugar, é necessário ter clareza sobre os conteúdos a ensinar e assegurar a vigilância
epistemológica a seu respeito. É preciso identificar os conhecimentos declarativos e os
procedimentais, sendo que nestes devem ser precisados os níveis de conceitualização, a fim
de clarificar os níveis de exigência esperados dos alunos. Por exemplo, para abordar a
respiração como uma troca gasosa, é necessário saber como o ar é constituído, o que é um
gás, o que permite as trocas gasosas, etc.
A identificação do campo nocional interno à disciplina e do campo nocional externo à
disciplina deve permitir recapitular o conjunto dos conhecimentos declarativos necessário
para a aprendizagem. O mesmo se deve fazer em relação aos métodos e técnicas. O
conhecimento da história do conhecimento declarativo a ensinar, as teorias gerais pelas
quais tem sido abordado, as retificações sucessivas ao longo do tempo, os obstáculos
epistemológicos que tem sido enfrentados, podem constituir referências úteis para melhor
compreender as representações dos alunos, suas dificuldades conceituais e, se for o caso,
saber situações que permitiram surgir obstáculos (Develay, apud Altet, 1997, p.106).

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