CAMOCIM CEARÁ

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa.(Mt.5)

domingo, 12 de outubro de 2014

ALIMENTAÇÃO E CULINÁRIA DO ÍNDIO

Lúcia Gaspar
Bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco

Os primeiros habitantes do Brasil, utilizando o que a natureza e a floresta lhes ofereciam, se alimentavam basicamente de mandioca, macaxeira ou aipim, milho,  carne de caças, peixes, raízes, frutas silvestres, palmito, castanhas, “cocos” de palmeiras e algumas folhas. Esse costume perdura até hoje com os índios que não têm muito contato com os homens brancos e que conseguem dessa forma preservar melhor a sua cultura.

As inúmeras palmeiras da flora brasileira, entre as quais o babaçu, a carnaubeira, o buriti ou miriti, a ouricuri, a inajá, foram bastante usadas pelos indígenas na sua alimentação. Delas extraiam frutos, óleos, bebidas, farinhas e palmitos. Muito importante também era o caju, fruta brasileiríssima, que além de ser ingerido in natura, serve para fazer suco, doce, vinho, licor, farinha e bolo com as suas castanhas. Segundo Orlando Parahym (1970, p. 67) havia guerras violentas entre os cariris e os tapuias para se apoderarem dos cajueiros existentes em áreas litorâneas. Ao vencedor... os cajus.

A castanha do Pará (conhecida hoje como castanha do Brasil) e o mel de abelha eram também alimentos fundamentais na dieta do índio brasileiro. Quando ainda não conheciam a cana-de-açúcar – que chegou ao Brasil em 1502, proveniente da Ilha da Madeira –, os indígenas retiravam o mel dos favos das colmeias, após afugentarem as abelhas com fogo, e ainda comiam as abelhas assadas sobre pedras. Sabiamente, tinham o cuidado de deixar um pouco de mel para assegurar a continuação do trabalho das abelhas, o que garantiria a obtenção permanente do alimento.

De uma maneira geral, as hortaliças não faziam parte dos hábitos alimentares do indígena. Cultivavam a mandioca – o pão do índio –, a macaxeira ou aipim, o milho, o amendoim. O plantio e a colheita de qualquer cultura agrícola eram feitos pelas mulheres (cunhãs), cabendo aos homens às atividades da caça e da pesca.

Entre as frutas silvestres que lhes serviam de alimento estão a mangaba denominada de bato-i (Hancornia speciosa); o ingá (Inga edulis) que eles chamavam de y-igá; o araçá (Psidium araçá); a jabuticaba (Myrthus jaboticaba); o abiu (Lucuma caimito); a guabiraba (Campomanesia guabirabaAbbelillea maschalantha); o oiticoró (Moquilea rufa); o mamão pequeno (Caryca papaya); o maracujá (Passiflora edulisPassiflora bahiensisPassiflora alata); a sapucaia também chamada cumbuca-de-macaco (Lecythis urnigera), da qual comiam a carne e as sementes e moqueavam ou assavam a castanha, considerada uma das delícias indígenas; o jenipapo (Genipa americana), cuja polpa e as sementes eram saboreados sendo a casca utilizanda para pintar o corpo de preto; o pequi (Caryocar brasiliense), aproveitando a amêndoa para a extração de um óleo rico em carotenos. A palavra pe-qui, na língua tupi, significa casca espinhosa, característica da fruta que é cheia de espinhos miúdos e finos.

Os seus temperos eram basicamente o sal e a pimenta ou uma mistura pilada dos dois. Eles abusavam da pimenta, qualquer que fosse a variedade: redonda, comprida, verde, vermelha, pequenas ou grandes. Alguns utilizavam também o limão, ervas silvestres, palmito de pindoba e o bredo ou caruru para temperar seus alimentos. O sal era obtido por meio da evaporação da água do mar, no caso das tribos que habitavam a região litorânea, em salinas naturais (areias impregnadas de sal) ou a partir da queima de madeira, de onde era retirado o sal das cinzas, bastante rico em potássio. 

Por meio do processo de fermentação do milho, da macaxeira, do caju, do jenipapo, da jabuticaba e da mangaba, os índios fabricavam bebidas, uma espécie de vinho chamado genericamente na língua tupi de cauim ou cahoi. 

Desde o século XVI, viajantes e cronistas estrangeiros em terras brasileiras falam de usos e costumes indígenas, sua alimentação e técnicas de cozinha.

O primeiro registro feito pelos colonizadores portugueses está na carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500:

[...] Dizem que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham a saber, muito inhame e outras sementes que na terra há e eles comem [...] (Pero Vaz de Caminha, citado por LODY, 2000).

O inhame citado por Caminha, trazido posteriormente da África para o Brasil, era na verdade a mandioca, confundida pelo português devido à semelhança entre as duas raízes. 

O viajante francês Jean de Léry, em 1557, no seu livro, História de uma viagem feita à terra do Brasil, descreve diversos costumes indígenas sobre a alimentação e modo de preparar os alimentos e bebidas:

[...] os indígenas americanos têm nas suas terras duas espécies de raízes, a que chamam aipim e mandioca, as quais em três ou quatro meses crescem no solo e ficam tão grossas como a coxa de um homem, com o comprimento de pé e meio, mais ou menos: quando as arrancam, as mulheres (pois os homens não se ocupam disso) secando-as ao fogo nomoquém, tal como logo descreverei, ou tomando-as ainda frescas, as ralam à força em pontas de pedras miúdas fixadas e arranjadas em uma peça chata de madeira (como ralamos e raspamos o queijo e a noz moscada), e as reduzem a farinha alva como a neve. [...] (LÉRY, 1889, p. 194).

[...] a raiz do aipim não só é boa transformada em farinha, mas também pode comer-se assada inteira no borralho ou no fogo; pois assim fica tenra, abre-se, e torna-se farinácea como a castanha nas brasas, cujo gosto é quase igual.
Entretanto, o mesmo não acontece com a raiz da mandioca, pois serve somente para fazer farinha, e é venenosa se a comermos de outro modo (LÉRY, 1889, p. 196).

[...] quanto ao modo de cozinhar e preparar a carne, nossos selvagens a fazem, moquear, na forma de seu costume. [...] infincam em suficiente profundidade na terra quatro forquilhas [...]
formam uma grande grelha de madeira, que na sua linguagem chamam demoquem. [...] E por que não salgam suas viandas para guardá-las, como cá nós fazemos, não têm outro meio de as conservar senão fazendo-as assar. (LÉRY, 1889, p. 207).

O moquém serve principalmente para conservar os alimentos, desidratando-os, mas conservando seu sabor. É um processo que lembra o fumeiro usado pelos europeus. A carne fica meio assada, sendo necessário normalmente levá-la novamente ao fogo para o consumo.

Outra tradição indígena no preparo de alimentos é o biaribi – um forno construído em um buraco no chão, forrado com folhas. Coloca-se a carne, também envolta em folhas e cobre-se com terra. Sobre o forno acende-se uma fogueira para assar a carne. Há também o processo de espetar a carne e o peixe em varetas de madeira e colocá-los diretamente no fogo, verificando-se pelo olhar e pelo olfato quando estavam no ponto desejado.

Existem, atualmente, mais de duzentos grupos indígenas conhecidos no território brasileiro. Cada um com seus hábitos alimentares, preferências gastronômicas e alimentos que não conseguem ingerir. Iguarias para alguns são alimentos  repulsivos para outros.

Para muitos deles, a mandioca é a base da alimentação, sendo o milho também importante para muitas tribos. Alguns, como os Timbira, de Tocantins e Maranhão, e os Nambikwara, de Rondônia, coletam alimentos disponíveis na floresta, sem se dedicar muito a plantações, ao contrário dos Caiapó, de Mato Grosso e do Pará, que possuem grandes roças, contando inclusive com especialistas para avaliar o local do melhor solo para as suas culturas agrícolas nas aldeias.

Há grupos que consomem carne de animais como antas e jabotis – caso dos índios Caiapó, que preferem carnes gordas –, e os que se alimentam mais de peixes e carne de macacos, como os da região do Alto Xingu.

A caça era uma das principais fontes de alimento para o indígena. Animais como porco-do-mato, paca, veado, macaco, javali, capivara, cotia, tatu, gato-do-mato e  anta eram preparados com pele e vísceras. 

Outra importante fonte de alimento eram os peixes, tartarugas, moluscos e crustáceos. Entre os peixes mais consumidos estavam os pirarucus, carapebas, curimãs, tucunarés, comorins, cavalas, traíras, beijupirás, surubins, tambaquis, garoupas, sardinhas, agulhas, piranambus e jaús. Eram inúmeros os peixes de água salgada e de água doce, conhecidos e consumidos pelos índios brasileiros. Os que tinham pele ou couro eram chamados de pirá e os de escamas cará. Os maiores eram preparados assados ou moqueados; os menores eram cozidos, sendo o caldo utilizado para fazer pirão.

Além da farinha de mandioca também fazem parte da culinária tradicional do índio outros tipos de farinha, como as de peixe seco, inhame (cará), amendoim e banana.

Com os peixes moqueados eles faziam farinha de peixe e paçoca, alimentos que se conservavam por muito tempo. Chamavam de muqueca o peixe envolvido em folhas de bananeira e mixira o peixe assado.

Da carne de tartaruga as mulheres índias preparavam o sarapatel, com os miúdos cozidos no próprio casco do quelônio, ou serviam sua carne assada, picada em pequenos pedaços, com farinha-d’água (ou farinha com água), também conhecida como chibé ou jacuba, um dos mais populares e tradicionais alimentos da região amazônica.

Sopa de aviu, um camarão minúsculo, engrossada com farinha de mandioca, era outro prato bastante consumido pelos índios.

Assim como as culturas agrícolas, entre os indígenas brasileiros o preparo da comida também é uma atividade exclusiva das mulheres. 

Há uma grande quantidade de alimentos de origem indígena, assim como a forma de prepará-los e de consumi-los, que foram assimilados pela culinária brasileira, entre os quais podem ser destacados: o uso da farinha de mandioca em beijus, tapiocas e no pirão; alimentos cozidos ou assados em folhas de bananeira; comidas de milho e a paçoca, uma espécie de farofa feita com peixe ou carne pilados com farinha.

Recife, 6 de março de 2013.

FONTES CONSULTADAS:

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil: cardápio indígena, dieta africana, ementa portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. v. 1.

CULTURA indígena: culinária indígena. Disponível em: <http://indigena-grupo.blogspot.com.br/2010/07/culinaria-indigen.html>. Acesso em: 25 fev. 2013.

LÉRY, Jean de. História de uma viagem feita à terra do Brasil. Tradução de Tristão de Alencar Araripe. Rio de Janeiro: J. Leite, 1889. 371p.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Alimentos preparados à base da mandioca. Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro, ano 3, n. 5, p. 37-82, jan./abr. 1963.

PARAHYM, Orlando da Cunha. Antropologia e alimentação. Recife: Secretaria de Estado de Educação e Cultura, Departamento de Cultura, 1970.

PEREIRA, Nunes. Panorama da alimentação indígena: comidas, bebidas & tóxicos na Amazônia brasileira.  Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974.

COMO CITAR ESTE TEXTO:
Fonte: GASPAR, Lúcia. Índios do Brasil: alimentação e culinária. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>Acesso em: dia mês ano. Ex: 6 ago. 2009.

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